Doença hereditária só se manifesta se a pessoa herdar duas cópias do gene defeituoso, uma da mãe, outra do pai
O menino de 10 anos se exibia andando sobre brasas e perfurando os seus braços com facas. Seus braços apresentavam feridas abertas e seus pés tinham queimaduras graves. Ele não sentia dor.
Foi esse pequeno paquistanês que levou uma equipa de cientistas a procurar outras famílias com a mesma doença. Foram localizadas três famílias, uma com três crianças afectadas, outra com duas e outra com uma menina afectada; um total de seis pacientes.
O menino que despertou o interesse dos cientistas não pôde ser incluído no estudo porque morreu ao saltar de um telhado.
Examinando os outros pacientes, se constatou que eles realmente não sentiam dor, mas tinham o sentido do tacto inalterado e eram capazes de sentir pressão, calor e frio.
Todos eles haviam perdido parte da língua e dos lábios após terem se mordido acidentalmente na infância. Muitos também apresentavam cicatrizes no corpo e diversas fracturas nos membros.
A árvore genealógica das três famílias mostrou que as crianças afectadas eram filhos de casamentos consanguíneos, geralmente entre primos da mesma família.
Isto demonstra que a doença é hereditária, e só se manifesta se a pessoa herdar duas cópias do gene defeituoso, uma da mãe, outra do pai.
Como o gene alterado é muito raro na população, a probabilidade de uma pessoa afectada surgir de um casamento entre famílias distantes é extremamente baixa.
Analisando o DNA dos membros das três famílias e de posse da sequência completa do genoma humano, foi relativamente fácil descobrir que o gene defeituoso estava no cromossoma 2.
Análise detalhada revelou que o mesmo gene estava alterado nas três famílias. O gene, cujo nome é SCN9A, já havia sido descrito. Ele é responsável pela produção de uma proteína envolvida na transmissão dos sinais eléctricos nas células do sistema nervoso.
Apesar de o gene alterado ser o mesmo nas três famílias, a alteração que o fez perder sua função é diferente em cada caso. O curioso é que existe uma outra doença, descrita faz muitos anos, na qual esse mesmo gene está envolvido.
Pacientes com a doença, chamada de erythermalgia, possuem versão hiperactiva do gene, sentindo dores fortíssimas, como queimaduras, quando encostam em um objecto morno.
O fato de a ausência de funcionamento desse gene levar a uma total incapacidade de sentir dor, associado à observação de que pessoas com uma versão mais activa do gene sentem dores fortes, confirma que ele está directamente envolvido com o mecanismo da dor.
Apesar de a medicina ter a seu dispor dezenas de analgésicos e anestésicos, nenhuma dessas moléculas age directamente sobre a proteína produzida pelo SCN9A.
A descoberta pode permitir o desenvolvimento de nova família de moléculas capazes de bloquear a actividade da proteína codificada pelo SCN9A. Isso permitiria bloquear a dor sem induzir o sono.
A história que une a criança que se auto-flagelava no Paquistão a uma droga capaz de suprimir a dor é mais um exemplo dos caminhos sinuosos da pesquisa científica.